Denúncias sobre dificuldades de cadastro no Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP), além de restrições de acesso à benefícios da Previdência Social e ao Seguro Defeso foram abordados na Audiência Pública Políticas Públicas às Pescadoras e Pescadores Artesanais realizada na terça-feira (18), no Auditório da Defensoria Pública da União (DPU), em Brasília (DF). Organizada pelo Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais e pela Defensoria Pública da União, a atividade reuniu pescadores e pescadoras de vários lugares do Brasil, agentes do Conselho Pastoral dos Pescadores, defensores públicos, além de representantes do INSS, do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) para discutirem os entraves e dificuldades apontadas pelas comunidades pesqueiras no desenvolvimento das suas atividades.
Dividida em três mesas temáticas, a Audiência começou discutindo a Seguridade Social. A pescadora e coordenadora do MPP Maranhão, Ana Ilda, relatou as situações que pescadores e pescadoras têm enfrentado na busca por recebimento dos benefícios da Previdência Social. “Sobre o INSS, a gente não entende porque tantas dificuldades para acessar algo que seria tão simples. A gente leva os documentos, mas não tem os benefícios. A gente já se sente excluída pela aparência. Quando a gente chega lá, já vê uma discriminação bem grande. Em relação ao Seguro defeso, a gente tem o benefício negado mesmo tendo o protocolo”, denuncia. Ana Ilda faz referência à decisão judicial favorável aos pescadores artesanais que permitiria acessar o seguro-defeso em posse do protocolo de entrada no RGP, já que a emissão de novas carteiras do documento não acontece há quase 10 anos.
A representante da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS, Márcia Elisa de Sousa, apesar dos vários relatos trazidos pelos pescadores e pescadoras sobre situações em que a documentação necessária é apresentada completa nas agências do INSS, mas mesmo assim os benefícios são indeferidos, afirmou que se trata de situações de falta de enquadramento nas normas. “O que a gente precisa fazer é com que os pescadores se enquadrem dentro da previsão legal. Existem erros pontuais, precisamos verificar o que está errado no nosso sistema. Queremos conceder rápido e não negar a quem é de direito. Temos que conhecer como a política é constituída. Precisamos ter o nosso cadastro pessoal bem organizado. O INSS tem buscado atender o maior número possível”, defendeu.
A chefe de gabinete da Secretaria de Renda e Cidadania do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), Roseane Cunha, falou sobre os encaminhamentos que o MDS tem tomado para permitir que os pescadores e pescadoras artesanais possam acessar o Seguro-defeso e o bolsa-família ao mesmo tempo. Desde 2015 isso não era possível. “Estamos com essa pauta dos pescadores artesanais, já fizemos duas reuniões virtuais. No momento ainda não é possível, mas a partir de janeiro de 2024 vocês receberão o seguro defeso junto com o bolsa família. É uma notícia boa para uma situação que já tem se arrastado por anos”, falou Cunha.
Ao abrir a fala para os participantes da Audiência, o pescador Manoel Bueno, membro da coordenação nacional do MPP, pelo estado do Espírito Santo, foi uma das vozes que se pronunciou trazendo informações sobre o drama vivido pelos pescadores artesanais da bacia do rio Doce, que até o momento não foram devidamente indenizados e que têm sido proibidos de trabalhar devido às condições ambientais do rio. “Há informações de que o INSS quer retirar a condição de assegurado especial dos pescadores atingidos pela Vale. Pessoas que passaram a sua vida toda pescando. Vamos precisar muito da Defensoria Pública. Não temos culpa, não pedimos para que isso acontecesse. Já aconteceu muitos suicídios, separações. A gente traz essa preocupação muito grande. Cada dia que passa, a Fundação Renova está renovando o seu crime”, denuncia Bueno, fazendo referência à Fundação criada pela Mineradora Vale para fazer as tratativas com as populações atingidas pelo rompimento da barragem de mineração de Mariana (MG).
A pescadora Josana Pinto, membro da coordenação do MPP, pelo estado do Pará, lembrou que muitas pessoas não têm acesso à Internet para utilizar o aplicativo “Meu INSS”, que permite dar entrada na requisição dos benefícios da Seguridade Social. “Precisamos que o atendimento dentro da Previdência Social seja menos burocrático. O INSS precisa ter um canal de atendimento para as regiões que não tem acesso à Internet”. Ela também criticou a exigência feita pelo INSS de declarações das entidades de pesca para fazer a requisição da aposentadoria. “Não precisa ter a declaração de alguém. Declaração da entidade não é prova plena. Isso nega o atendimento ao trabalhador de fato”, critica.
RGP
A segunda mesa teve como tema os “Desafios no cadastro do Regime Geral da Previdência” e contou com a participação do Secretário Nacional da Pesca Artesanal no MPA, Cristiano Ramalho, além da Secretária-executiva do CPP regional Bahia/ Segipe, Maria José Pacheco, além de uma representante do INSS. Cristiano Ramalho falou do acordo de cooperação técnica que o MPA está fazendo com o Ministério da Previdência e do Trabalho, além dos Grupos de trabalho para discutirem diversas temáticas. “Temos feito a constituição de um GT para debater os temas relacionados à legislação”. Segundo o secretário, serão instalados um conjunto de 3 GTs (Legislação, Território e Mulheres), além do Fórum que ajudará a avaliar, acompanhar e sugerir políticas públicas para a Secretaria. O Fórum também será responsável pela construção do Plano Nacional da Pesca Artesanal. “Vamos lançar programas de bolsas para alunos do ensino médio, filhos de pescadores, além de termos de cooperação com as universidades do nordeste para pesquisas relacionadas à saúde e questões socioeconômicas”, relata.
Maria José Pacheco fez um breve histórico das dificuldades de acesso enfrentadas pelas comunidades pesqueiras para conseguirem o Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP) e para acessarem os benefícios previdenciários. Por cerca de 10 anos não houve o cadastramento de novos pescadores no RGP. “Estamos lutando por essa questão do RGP de maneira mais firme desde 2010. O RGP dá acesso a direitos básicos, direitos sociais. Várias medidas normativas têm sido feitas pelo Estado, à revelia das comunidades pesqueiras e desrespeitando a Convenção 169, já que qualquer medida administrativa que afete ou impacte essas comunidades, elas devem ser consultadas”, apontou.
Maria José também relatou que a partir dos decretos 8424 e 8425, lançados em 2015, passaram a ser considerados pescadores e pescadoras artesanais apenas quem trabalha na captura do pescado, ignorando uma série de trabalhadores e trabalhadoras que trabalham no beneficiamento e na construção de apetrechos da pesca artesanal. “Essas legislações tinham o objetivo de impedir os pescadores de acessarem o seguro-defeso”, aponta Maria José.
O debate sobre o RGP continuou na terceira mesa realizada durante a tarde, com o tema “Políticas públicas destinadas aos pescadores artesanais enquanto população tradicional”, que contou com a participação da Secretária de Registro, Monitoramento e Pesquisa do MPA, Flávia Lucena Frédou, que falou sobre as alterações que têm sido feitas no aplicativo para renovação do Registro Geral da Atividade Pesqueira. Desde o começo do processo do recadastramento em 2022, os pescadores e pescadoras artesanais têm denunciado as dificuldades de uso do aplicativo, que é lento e apresenta falhas graves como a não identificação do ano em que foi realizado o primeiro registro no cadastramento do pescador, o que pode dificultar a comprovação de tempo de trabalho do profissional da pesca para a aposentadoria, por exemplo. A exclusividade do cadastramento online também gera críticas. A reivindicação dos pescadores é que seja possível fazer o cadastramento presencial, devido às dificuldades de acesso à internet que acontece em várias regiões remotas do país.
“Nós escutamos várias das demandas no seminário que fizemos. Quero mostrar o que absolvemos das demandas, tanto da DPU quanto de vocês. Eu sei que é um sistema que tem muitos problemas. A gente fez esse processo de recadastramento no Amazonas e sabemos que é muito difícil. A nossa intenção é lançar no dia 8 de agosto o PesqBrasil – RGP Pescador pescadora. A celeridade do processo é o que está sendo prometido para nós com esse novo sistema. Estamos vendo como contemplar de incluir o atendimento presencial, além de usar a data do protocolo como data de primeiro registro, tanto na regulamentação, quanto no sistema”, explica Flávia.
A pescadora de Juazeiro (BA) e membro da coordenação nacional do MPP, Alice Borges, questionou o que vai ser feito com os pescadores artesanais que tiveram o RGP cancelado. “Como que vai ser resolvida a situação dos 186mil pescadores que tiveram os RGPs suspensos? Tinha gente que já estava perto de aposentar. Esses pescadores suspensos estão querendo reivindicar o pagamento desses retroativos de 7 anos”, aponta Alice.
O pescador Manuel Bueno também questionou a situação dos RGPs das embarcações. “Faltou respostas sobre os RGPs das embarcações. Isso está tirando o nosso sono. O sistema ainda não está funcionando e o IBAMA tem feito apreensões violentas contra os pescadores”, denunciou.
Acesso ao CAF
Na terceira mesa de debate participou também o representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) José Henrique. Ele falou das dificuldades para o uso do sistema de Cadastramento da Agricultura Familiar (CAF). “Recebemos um sistema que não funcionava. Muitos dos agricultores familiares ficaram duas semanas para concluir o cadastro. Por isso prorrogamos a validade das DAPS. O sistema do CAF estava ruim”, explica.
O sistema CAF é a porta para acessar o PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que tem como uma das suas principais políticas, a concessão de microcréditos para agricultura familiar, que também podem ser acessados pela pesca artesanal. “O microcrédito do PRONAF agora é no valor de R$ 10.000,00. O da mulher pode ser de até R$ 12.000,00”, explica Henrique.
Ele também apresentou como proposta a possibilidade de que o CAF possa utilizar a base de dados dos cadastros do RGP, para não haver a necessidade dos pescadores fazerem dois cadastramentos. Algo que já acontece com os beneficiários do INCRA. “Queremos alcançar com o microcrédito, os pescadores artesanais. Incluímos a pesca artesanal naquela faixa de atividades com juros mais baixos de 4% ao ano para a parte de produção de alimento”, explica. Diante das propostas apresentadas, os pescadores falaram das dificuldades que ainda existem para conseguirem ter acesso aos créditos disponíveis. “Porque mesmo eu sendo uma boa pagadora, o banco exige que eu tenha um avalista para conseguir o crédito?”, questionou a pescadora Mirelly Gonçalves de Pernambuco.
O último depoimento foi da representante do Conselho Ribeirinho do Xingu, Maria Francineide Pereira dos Santos. Através de um depoimento emocionado, Francineide relatou todos os impactos que os pescadores da região têm sofrido desde a instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte (UHBM), em 2016. “O Xingu não corre mais água. Não sabemos porque o MPA não olha para a gente. As árvores estão morrendo. Nós pescadores vivemos os impactos que vocês nem imaginam. Quando a hidrelétrica abre a água, os peixes morrem e não conseguem mais desovar. O IBAMA sabe disso. O pescado está morrendo e ninguém olha para a gente. Porque os pescadores do Xingu não podem ser indenizados devidamente? Queremos que a Usina Belo Monte cumpra todas as condicionantes que foram estabelecidas”. A pescadora também relata o impacto de tudo isso na saúde mental dos ribeirinhos. “Os pescadores estão doentes mentalmente e a gente não tem a quem pedir”, finaliza.
A defensora nacional de Direitos Humanos (DNDH) da DPU, Carolina Castelliano, acompanhou a discussão e informou que a DPU também está em contato com o Ministério da Pesca e Aquicultura para garantir que as demandas da categoria sejam ouvidas. “Nós apontamos as dificuldades enfrentadas pelas colônias de pescadores para fazer o Registro Geral de Pescadores e oficiamos o ministério para que tenha um olhar específico para essas comunidades”, explica. A DPU acompanhará os encaminhamentos que serão dados pelos órgãos governamentais que participaram da Audiência Pública.
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